O Instituto Todos pela Saúde (ITpS) reuniu oito ex-ministros da Saúde e a atual titular da pasta, Nísia Trindade Lima, no evento Experiências em Emergências de Saúde Pública, Preparação para Novas Crises e Institucionalidades Possíveis, na segunda-feira, 2. O objetivo era que os gestores compartilhassem suas vivências e as dificuldades enfrentadas no manejo de crises e discutissem ideias e caminhos de intervenção para responder, em tempo oportuno, a futuras emergências sanitárias.
Mariângela Simão, diretora-presidente do ITpS
"A preparação para o enfrentamento de pandemias requer tempo, recursos e uma resposta oportuna, e isso não se faz de uma hora para a outra", afirmou a diretora-presidente do ITpS, Mariângela Simão, na abertura do evento, em São Paulo. "Deve haver uma política de Estado capaz de fortalecer o sistema de saúde, tornando-o mais preparado para enfrentar futuras emergências em saúde, independentemente das transições de governo."
Além da ministra Nísia, participaram do evento os ex-ministros Alceni Guerra, Barjas Negri, Humberto Costa, José Agenor Álvares da Silva, José Gomes Temporão, Luiz Henrique Mandetta, Marcelo Castro e Saraiva Felipe. Na plateia estavam importantes nomes da saúde pública brasileira e presidentes ou representantes de renomadas instituições da área, como Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da Universidade de São Paulo (USP), Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e Organização Pan-americana da Saúde (Opas) e SoU_Ciência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Parte dos ex-ministros defendeu a criação de uma nova estrutura federal para controle e prevenção de doenças.
O senador Humberto Costa, que foi ministro da Saúde entre 2003 e 2005, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, destacou que estamos diante de um cenário climático desfavorável e com a possibilidade do surgimento de novas pandemias. "Precisamos dar um passo à frente e ter um órgão com absoluta independência e autonomia para enfrentamento de novas epidemias." Ele também ressaltou a importância de o país ter dados fidedignos para tomada de decisão com base em evidências científicas.
Mariângela apresenta o senador Humberto Costa, que foi ministro entre 2003 e 2005
A medida foi endossada por José Gomes Temporão, ministro entre 2007 e 2010, na segunda gestão de Lula. "Há uma percepção de busca permanente para ampliar a capacidade técnica e a qualidade do sistema. Uma nova institucionalidade pode ajudar na prevenção, no preparo e na resposta oportuna e unificada", disse Temporão.
José Gomes Temporão foi ministro de 2007 a 2010
Embora a pandemia de covid-19 tenha sido a emergência mais mencionada, todos os ex-ministros e a própria ministra enfrentaram surtos e epidemias que envolveram grandes desafios de saúde pública em suas gestões.
No caso do SARS-CoV-2, Luiz Henrique Mandetta, ministro entre 2019 e 2020, no governo do presidente Jair Bolsonaro, lembra que, por se tratar de um vírus até então desconhecido, não havia orientações iniciais claras nem por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS). "Faltavam referências, faltava um marco legal, leis para emergências sanitárias e quarentena, recursos para compras emergenciais. Havia a necessidade de mudar processos, envolver vários órgãos e o Judiciário", contou. "Precisamos de um marco legal para dar estabilidade mesmo quando há troca de ministro, além de investir na formação de profissionais da saúde."
Luiz Henrique Mandetta foi ministro em 2019 e 2020
Também há dificuldades ainda que as medidas sejam tomadas a tempo e de acordo com a "cartilha" recomendada. Saraiva Felipe, ministro entre 2005 e 2006, no primeiro governo Lula, afirmou que, na iminência de uma epidemia de H5N1, o Ministério da Saúde seguiu todas as orientações. "Envolvemos órgãos como Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), atuamos nos aeroportos, compramos medicamentos. Mas a epidemia não chegou e tivemos, por exemplo, que lidar com questionamentos do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre compras", disse Felipe.
Saraiva Felipe foi ministro em 2005 e 2006
"Talvez seja interessante criar uma autoridade nos moldes de um centro de controle de doenças. Mas teria que haver uma articulação permanente e olhar para o funcionamento das equipes locais de saúde, já que algumas funcionam bem e outras nem tanto. É preciso treinar pessoal, fortalecer a indústria de equipamentos médicos e reduzir a dependência de importações", destacou Felipe.
Embora a preparação de Felipe não tenha se deparado com a emergência prevista, suas medidas e ações facilitaram o enfrentamento de outro vírus influenza, o H1N1, em 2009, já na gestão de Temporão. "Acionamos uma rede de laboratórios para diagnóstico, adquirimos vacinas, investimos na produção local e importação do antiviral, criamos um grupo para definir ações e investimos na comunicação", contou Temporão. "Nosso plano permitiu retardar em 81 dias o primeiro caso autóctone, e fizemos uma das maiores campanhas de vacinação da história, com 89 milhões de pessoas vacinadas em cinco meses."
Temporão, que ao longo de quatro anos de gestão enfrentou cinco epidemias – dengue, febre amarela, H1N1, rubéola e meningite C –, também destacou a importância das campanhas de vacinação. Houve cobertura vacinal de 95,8% para rubéola, e no caso da vacina contra meningite C, o imunizante foi incorporado ao Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Atuação conjunta, falta de recursos e treinamento
Um ponto em comum na visão dos gestores é a necessidade de envolver todos os setores e integrar as ações entre os governos federal, estadual e municipal, já que a implementação se dá na ponta. Um exemplo foi o enfrentamento ao surto do zika vírus. "Fizemos tudo conforme o manual. Montamos equipe, centro de comando, reunimos governadores, prefeitos, secretários de Saúde. Fizemos uma ação sinérgica com governo federal, estadual e municipal. Tivemos reconhecimento da OMS de que estávamos preparados para enfrentar a doença", conta o senador Marcelo Castro, ministro da Saúde entre 2015 e 2016, no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff.
O senador Marcelo Castro, no telão, foi ministro em 2015 e 2016
Castro relatou como foi esse trabalho em conjunto com institutos, como a Fiocruz, desde os registros de um aumento atípico de casos de microcefalia em Pernambuco até a associação com o vírus. "Em menos de um mês, nossas pesquisas mostraram, pela primeira vez no mundo, a associação entre a infecção pelo zika vírus e os danos ao sistema nervoso central." O senador também defendeu a importância do estabelecimento de um órgão de prevenção e controle de doenças no Brasil.
Barjas Negri foi ministro em 2002 e 2003
Barjas Negri, que foi secretário-executivo do Ministério da Saúde e, depois, titular da pasta entre 2002 e 2003, no segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, lembrou dos desafios diante da falta de recursos e de integração com as secretarias. "No início, havia muita instabilidade financeira. Não existia a emenda constitucional 29 (que assegura recursos mínimos para ações e serviços públicos em saúde). Ao enfrentar as epidemias de HIV e dengue, tivemos muita dificuldade com medicamentos. Simplificamos a transferência de recursos e repasses para secretarias municipais, articulamos com os estados e, ainda, ampliamos a testagem HIV e a distribuição dos preservativos."
Alceni Guerra foi ministro entre 1990 e 1992
Já Alceni Guerra, ministro da Saúde entre 1990 e 1992, no governo do presidente Fernando Collor de Mello, recordou o desafio da própria implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), quando não havia recursos e o país enfrentava aumento dos casos de aids, sarampo e cólera – que se espalhava pelo interior da Amazônia, impondo um obstáculo extra às equipes de saúde. "Destaco a importância da informação e cooperação. Fizemos campanhas de prevenção à aids para chegar a toda a sociedade, conseguimos vacinar 32 milhões de crianças contra o sarampo e criamos o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, com pessoas da própria comunidade para fornecer cuidados de atenção primária."
Papel da comunicação e da informação
A importância da comunicação durante as crises também foi destaque. Segundo Temporão, durante o surto de febre amarela, havia pouco conhecimento sobre o diagnóstico da doença e certo pânico criado pela imprensa, o que ampliou além do necessário a procura pela vacina. "Conduzimos mal a comunicação sobre a crise. Hoje eu mudaria a estratégia e o diálogo com os profissionais de saúde e a sociedade", disse Temporão.
"O Ministério da Saúde deve dar exemplo de compromisso com a saúde pública e atuar para prover serviços de qualidade, e o governo deve atuar em busca de soluções para os problemas, mesmo quando parece não haver. Nosso sistema de saúde não é frágil, seja política ou operacionalmente", afirmou José Agenor Álvares da Silva, ministro entre 2006 e 2007, no segundo governo Lula.
José Agenor Álvares da Silva foi ministro em 2006 e 2007
Já a ministra Nísia, que enfrentou neste ano a mais grave epidemia de dengue da história do Brasil, ressaltou um modelo de preparação e resposta baseado em governança e ações coordenadas sob liderança do Ministério da Saúde. "Em uma situação de emergência, o papel do governo e da sociedade se faz dos mais prementes. Mais do que uma nova estrutura, defendo um programa de articulação e de preparação e resposta para futuras emergências sanitárias que envolva todo o governo e que tenha ações de saúde coordenadas pelo Ministério da Saúde."
Nísia também enfatizou a importância dos aprendizados. "As pandemias deixam legados. Hoje temos grandes desafios, entre eles a própria reconstrução do SUS após a desestruturação de muitos programas, como o PNI." Entre as ações em curso para o enfrentamento de novas emergências, a ministra destacou a atuação junto ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o fortalecimento da rede de laboratórios nacionais e de instituições como o Instituto Evandro Chagas e a Fiocruz.
Mariângela e a ministra Nísia, no telão
Crédito das fotos: JF Diorio/Divulgação ITpS