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Comunicação
Lupa: Para Margareth Dalcolmo, 'a negação da pandemia está ligada a um processo de desinformação'
Agência Lupa

Lupa: Para Margareth Dalcolmo, 'a negação da pandemia está ligada a um processo de desinformação'

27.10.2023

Victor Terra / Rio de Janeiro


Crédito da imagem: Divulgação


Margareth Dalcolmo se tornou uma das principais referências para a população ao longo da pandemia de covid-19. A postura ao mesmo tempo incisiva e ponderada levou a médica a se tornar uma das embaixadoras da vacinação no Brasil. "Os médicos costumam ser muito ponderados, às vezes até excessivamente. Não é meu caso. Costumo ser muito franca sempre. Fui muito aguda em momentos difíceis."


Hoje presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e circulando pelo Brasil com campanhas de vacinação do SUS, a pesquisadora da Fiocruz e membro da Academia Nacional de Medicina fala em entrevista à Lupa sobre saúde e divulgação científica, comenta as estratégias para recuperar a credibilidade da vacinação, o novo livro que está escrevendo e o papel dos médicos na mídia para combater a desinformação: "Em assuntos de natureza científica, a minha opinião não pode prevalecer sobre aquilo que está demonstrado".


Confira os principais trechos da entrevista:


*


A senhora teve papel importante durante a pandemia de covid-19 divulgando informações com bases científicas na imprensa. Com isso, tornou-se uma das referências no assunto. Como foi que isso começou?


Eu gravei uma live com um colega de maneira despretensiosa, fazendo um resumo do que seria uma epidemia por um vírus agudo de transmissão respiratória, da tragédia que se abateria sobre o Brasil e ele colocou num blog. Isso teve uma repercussão midiática enorme.


Passadas 48 horas de eu ter gravado essa live, a Globo me contactou, dizendo que eu tinha quase 2 milhões de visualizações no mundo inteiro. Foi muito surpreendente. Dei uma entrevista ao vivo na televisão no dia 14 de março de 2020 e aí nunca mais saí (da mídia).


Eu era sempre avisada: 'Olha, preciso que a senhora se manifeste, por exemplo, no horário nobre de televisão. Precisa ser a senhora porque a sua confiabilidade é muito grande em parte das pessoas que nos ouvem'. Nós (médicos) conseguimos aumentar o grau de consciência social nessa população tão amedrontada que foi tão maleficamente atingida.


Como manter um discurso ponderado em meio a polarizações e negacionismo científico?


Não publico nada que não seja informação científica, até porque eticamente nós, médicos, não devemos e não podemos publicar nada de caráter pessoal ou social.


Quando alguém me pergunta assim: 'Qual é a sua opinião sobre isso?', eu tenho por norma dizer: 'Não é minha opinião, é aquilo que está demonstrado pela pesquisa tal, na revista tal'. Em assuntos de natureza científica, a minha opinião não pode prevalecer sobre aquilo que está demonstrado.


O quanto essa sua projeção midiática lhe trouxe problemas relacionados à desinformação? Chegou a ser vítima de fake news ou discurso de ódio?


Não tive tempo de ler as redes sociais porque trabalhei o tempo inteiro, exceto nas duas ou três semanas em que fiquei doente com covid-19 ainda no ano de 2020. Mas, mesmo assim, fui importunada, sim, houve alguns momentos. Eu nunca dei muita importância.


Durante o período mais agudo, dei uma declaração e escrevi um artigo para um jornal de grande circulação recomendando que não houvesse Carnaval. E como não havia tido Carnaval em 2021, recomendei textualmente que não houvesse em 2022 porque a cobertura vacinal ainda não era adequada, a circulação (do vírus) bastante alta e o número de casos e de mortes ainda muito significativo.


Recebi muitos comentários ofensivos e telefonemas inadequados. Isso tudo aconteceu. Nada que eu tenha me preocupado mais do que o necessário, mas foi muito desagradável receber telefonemas dizendo coisas muito deselegantes. Um período que foi agravado pela força simbólica que tem o Carnaval na nossa cultura.


Hoje, recebo manifestações de confiança e afeto de pessoas que eu não conheço em aeroportos, aviões, em saguão de edifícios e no sinal de trânsito. É muito curioso como eu fiquei realmente conhecida e nunca recebi nenhuma demonstração, pelo menos pública, assim pessoalmente que tenha me chateado.


Qual o potencial da mídia e das redes sociais para informar?


Há quatro anos, eu não tinha nenhum conhecimento da dimensão do que as redes sociais poderiam fazer pelo bem e pelo mal. Hoje, sei perfeitamente os efeitos, por um lado, informativos e, por outro, extremamente nocivos, pela maneira como são usadas.


Acho que as redes sociais têm uma função muito importante e acessível. Elas podem, sim, ter um papel educador, desde que a informação passada seja capaz não apenas de informar, mas sobretudo de sensibilizar as pessoas para a importância daquilo que realmente é relevante sobre a informação recebida.


Senão nós caímos exatamente naquele exemplo daquele personagem do grande autor Jorge Luis Borges, o Funes (o Memorioso), que guardava na memória qualquer coisa, qualquer tipo de informação: sabia o número de folhas de uma árvore, por exemplo. Isso é uma bobagem. Se você não tiver o mínimo de critério para saber sobre quem você está pesquisando, você vai engolir como verdade qualquer coisa que seja dita a meu respeito ou de quem quer que seja.


Em uma entrevista no início da pandemia de covid-19, a senhora disse que o momento representava também a “primeira epidemia digital e mundial” e alertou que as medidas para a contenção da doença deveriam ser rápidas, duras e até radicais. Que medidas devem ser tomadas para conter a desinformação em Saúde nas redes sociais hoje?


Confesso que tenho grande preocupação quanto ao prognóstico disso tudo, porque o que tenho visto é uma população que saiu ou ainda sai muito amedrontada pelo vivido. A nossa vida é partida mesmo: A.C/D.C: 'Antes da Covid' e 'Depois da Covid'. Não há dúvida, não adianta negar. Essa negação, que faz parte da nossa cultura de que não houve problema, é algo que me incomoda profundamente e que está ligado a um processo de desinformação. É algo que está no inconsciente coletivo de grande parte da nossa população.


E qual é o papel dos médicos nesse contexto?


Nós (médicos) tivemos muita consciência e não falo em coragem porque não vejo mérito nisso, vejo apenas um compromisso. Drauzio Varella já tinha uma grande experiência com mídias sociais, mas muitos de nós não tínhamos. E o que nós conseguimos foi extraordinário.


Nós fizemos algumas coisas heterodoxas. Nós somos médicos e os médicos costumam ser muito ponderados, às vezes até excessivamente. Não é meu caso. Costumo ser muito franca sempre. Fui muito aguda em momentos difíceis. Me lembro quando, em 2020, um jornalista me perguntou: 'é verdade que a senhora vai dizer na televisão que não pode ter Natal, doutora?' Eu disse: 'vou sim'.


E eu disse no Jornal Nacional: "Não pode ter Natal". Até brinquei: "Quem fez a ceia, congela porque esse ano não pode ter Natal". Não tinha vacina! Você vai levar seu avô e sua avó para sua festa, todo mundo vai ficar doente? Então, não pode ter Natal. E eu fui nesse momento duramente criticada: 'como eu podia fazer isso?'.


Atualmente, a senhora é uma das embaixadoras da vacinação no Brasil. Os índices da dose bivalente da covid-19, por exemplo, estão baixos por todo país. Como recuperar essa confiança e engajar novamente a população para que se vacine?


Temos que usar figuras que a população confia, que sejam simpáticas a ela. Por isso é que eu aceitei (ser embaixadora da vacina). Não somos especialistas em vacinas. Sou médica pesquisadora, pneumologista, trato doenças, faço pesquisas clínicas. E por que me tornei 'embaixadora', e fui gravar propaganda para o Ministério da Saúde, com figuras como a Xuxa, que também virou embaixadora da vacina? Porque são figuras simpáticas à população.


Vários de nós (médicos) temos que nos manifestar, a comunicação do próprio Ministério da Saúde precisa manter uma ocupação consistente dos espaços que existem na própria grande imprensa e existe um espaço governamental que também pode ser usado nesse sentido.


Como avalia a postura do Ministério da Saúde nesses primeiros 10 meses de governo Lula? Quais devem ser as estratégias?


Defendo a estratégia do Ministério da Saúde atual. O Brasil é um país enorme, continental, com diferenças culturais regionais. Somos 205 milhões de falantes da mesma língua, mas temos hábitos e costumes diferentes em cada região. Então, essa regionalização e a multivacinação – as duas estratégias que nós escolhemos junto ao Plano Nacional de Imunização (PNI) – são super corretas. Não adianta querer fazer uma campanha nacional, porque não vai funcionar.


A estratégia de regionalização das campanhas de multivacinação – cada local com uma estratégia diferente, ouvindo as pessoas do local – é muito melhor do que as grandes campanhas nacionais.


E nós estamos vendo que essa estratégia (de regionalizar e multivacinar) não só é correta como já está obtendo resultado. Aumentamos as taxas de cobertura de várias vacinas (em 2023). No caso da BCG, por exemplo, hoje nós já alcançamos quase 70% na maior parte dos lugares, então, já tivemos impacto em algumas vacinas.


Do ponto de vista da comunicação, houve uma perda de credibilidade sobre as vacinas em função de conteúdos desinformativos que circularam em massa em redes sociais e aplicativos de mensagens durante e após a pandemia. Como recuperar essa credibilidade?


Nós ainda precisamos trabalhar na comunicação para que alcancemos doses vacinais pediátricas adequadas na população, que está muito baixa.


A comunicação oficial (do Ministério da Saúde) tem que chegar às escolas, não pedir que os pais tragam as crianças aos postos de saúde, porque pai e mãe trabalham, então a vacinação tem que ir às escolas.


O posto de saúde fecha às 16h, a pessoa trabalha, então, nem o pai nem a mãe podem levar (a criança) até as 16h. Ele não abre numa hora que os pais possam levar também, não abre sábado, então, não adianta: ou o posto de saúde funciona numa hora em que as pessoas possam levar ou a vacina tem que ir, que nem a música, tem que ir onde o povo está. A vacina tem que ir onde as crianças estão, onde as pessoas estão.


Você anunciou um novo livro, ele será mais acadêmico? Quais questões vai abordar?


É algo mais pessoal. Vou escrever sobre as minhas impressões. Alguém já me perguntou se seria um making off da pandemia. Quem sabe? Acho que algum componente disso seguramente haverá, porque é um registro mais pessoal dessa travessia. Eu vivi momentos muito difíceis pessoalmente, também: tive uma irmã que quase morreu de covid-19, perdi meu marido. Foram momentos muito difíceis, mas, ao mesmo tempo, tive grandes alegrias. Fui eleita para a Academia Nacional de Medicina, assumi a Sociedade Pneumologia e publiquei um trabalho sobre a vacina BCG na revista médica de maior prestígio do mundo, a New England.


Muitas decepções, muitas cicatrizes, o excesso de luto que a covid-19 gerou muitas perdas, mas nós vamos compensando também com grandes alegrias.


Nota: Este conteúdo foi produzido pela Lupa com apoio do Instituto Todos pela Saúde (ITpS). Para ler o texto no site da Lupa, clique aqui.


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