Cinco anos atrás, notícias que chegavam da China davam conta da circulação de um vírus desconhecido. O mundo estava despreparado para lidar com a maior pandemia desde a gripe espanhola, ocorrida um século atrás. A Covid-19 colapsou sistemas de saúde até em países ricos e causou mais de 7 milhões de mortes oficiais –10% delas no Brasil. A emergência lançou a economia global na pior recessão desde a Segunda Guerra, conforme o Banco Mundial, e seus impactos eliminaram uma década de progresso na expectativa de vida global, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No Brasil, é impensável discutir a resposta à pandemia de Covid sem ressaltar a imensa capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o país enfrentou dificuldades significativas que levaram a ações reativas e emergenciais, de caráter provisório, diante da implementação insuficiente do plano nacional, da falta de coordenação do governo federal e de uma comunicação inconsistente e suscetível aos ataques do negacionismo científico. Ficou evidente que os processos, estruturas e respostas convencionais não foram suficientes e que o enfrentamento às emergências em saúde pública (ESP) exige novos instrumentos e estratégias.
O Estado brasileiro necessita de um instrumento que assegure o desenvolvimento e a continuidade de estratégias e ações com o objetivo exclusivo e permanente de monitorar riscos, prevenir, controlar, preparar e combater futuras epidemias e pandemias, assim como os efeitos da emergência climática, de modo que o país não reaja tardiamente às crises sanitárias.
A esse propósito cabe a instituição de uma política de Estado para preparação e enfrentamento de ESP a fim de que sejam assumidos compromissos de longo prazo, ancorados no interesse público, e sem o risco de instabilidade e mudanças de rumos a cada transição de governo. Tal política implica no esforço de integrar e coordenar as atividades de vigilância e atenção à saúde.
A força desse arranjo passa por uma perspectiva nacional e unificada, pactuada por estados e municípios, para garantir rapidez na tomada de decisões e autonomia sobre prioridades e recursos, evitando medidas ineficientes. Faz-se, ainda, necessária a intersetorialidade, com a colaboração permanente entre diferentes setores do governo, como saúde, meio ambiente, agricultura, além de ciência, tecnologia e inovação, entre outros. É preciso, também, articulação com a sociedade civil –da inserção nos mecanismos de planejamento das ações ao desenvolvimento de estratégias de proteção social.
Para executar tal política, é fundamental a criação de uma instituição federal de controle e prevenção de doenças, vinculada ao Ministério da Saúde, em consonância aos princípios e diretrizes do SUS e alinhada aos outros entes da gestão tripartite. Deve-se ter modelagem jurídica que garanta autonomia técnica, agilidade, transparência e que possibilite captação e manutenção de profissionais altamente especializados, além de orçamento próprio. Deve-se estabelecer governança coesa e colaborativa para lidar com as crises sanitárias nacionais e globais.
O momento de discutir uma política de Estado –com atualização do arcabouço legal de 1975– e a criação de uma instituição é agora. É certo que viveremos novas ESP, só não sabemos quando ou como. Importa destacar que as crises sanitárias causadas por agentes já conhecidos ou emergentes não se esgotaram após a Covid. Apenas em 2024, o Brasil enfrentou, com estruturas ainda desmanteladas, a maior epidemia de dengue da história, mpox, oropouche e gripe aviária (esta última circula em aves e mamíferos, com ameaça iminente de transmissão entre humanos).
Em uma época de ameaças à saúde intricadas e influenciadas por mudanças climáticas, desmatamento e deslocamento populacional em larga escala, as estruturas disponíveis e os caminhos já utilizados parecem não dar conta dos futuros desafios. A complexidade dos novos cenários, que também serão impactados pela futura saída dos Estados Unidos da OMS, exige respostas urgentes e inovadoras e que sejam, ao mesmo tempo, duradouras e efetivas.
Cristiana Toscano
Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante do Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização da Organização Mundial da Saúde (Sage-OMS)
José Agenor Álvares da Silva
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ex-ministro da Saúde
José Gomes Temporão
Médico sanitarista, pesquisador da Fiocruz) e ex-ministro da Saúde
Maria Glória Teixeira
Professora aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ex-coordenadora nacional da Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde
Mariângela Simão
Diretora-presidente do Instituto Todos pela Saúde (ITpS) e ex-diretora-geral adjunta da OMS
Rita Barradas Barata
Professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e ex-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
Conteúdo disponível no site da Folha
O artigo também foi endossado por outros nomes da saúde pública brasileira:
Amilcar Tanuri
Chefe do Laboratório de Virologia Molecular do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Antonio S. Lima Neto
Secretário de Vigilância da Secretaria da Saúde do Ceará e professor do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor)
Arthur Aguillar
Diretor de Políticas Públicas do Instituto de Estudos para as Políticas de Saúde (Ieps)
Beatriz Nadas
Presidente do Instituto Municipal de Administração Pública (Imap) e ex-secretária de Saúde de Curitiba
Carlos Medicis Morel
Ex-presidente da Fiocruz e atual diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz)
Claudio Maierovitch Pessanha Henriques
Sanitarista da Fiocruz, ex-presidente da Anvisa e ex-diretor de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde
Dirceu Greco
Professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde (2010-2013) e presidente da Sociedade Brasileira Bioética (2017-2021)
Eduardo Hage Carmo
Professor da pós-graduação da Escola Fiocruz de Governo, médico sanitarista da Secretaria de Saúde do Distrito Federal e consultor AdHoc da Organização Mundial da Saúde (OMS)
Eliseu Waldman
Professor sênior do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP e editor associado da Revista de Saúde Pública
Ester Sabino
Professora titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e consultora científica do Instituto Todos pela Saúde (ITpS)
Gerson Penna
Pesquisador da Fiocruz, professor da Universidade de Brasília (UnB), ex-secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e ex-diretor da Fiocruz Brasília; membro do Grupo Consultivo Estratégico e Técnico sobre Riscos Infecciosos com Potencial de Pandemia e Epidemia (STAG-IH) do Comitê Geral de Preparação e Prevenção para Epidemias e Pandemias da OMS
Gonzalo Vecina
Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV), ex-presidente da Anvisa, ex-secretário nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e ex-secretário municipal da Saúde de São Paulo
Margareth Dalcolmo
Pesquisadora da Fiocruz e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT)
Moisés Goldbaum
Professor sênior do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e ex-superintendente da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) do Estado de São Paulo.
Pedro Ribeiro Barbosa
Diretor-presidente do Instituto de Biologia Molecular do Paraná, ex-vice-presidente de Gestão e Desenvolvimento Institucional da Fiocruz e ex-vice-diretor de Desenvolvimento Institucional e Gestão da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP)
Vanderson Sampaio
Diretor de Operações do ITpS, professor de Programas de pós-graduação da Fiocruz Amazônia e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), ex-pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado e ex-coordenador da Sala de Situação de Saúde da Fundação de Vigilância em Saúde Dra Rosemary Costa Pinto
Wanderson Oliveira
Epidemiologista na direção técnica de Ensino e Pesquisa do Hospital das Forças Armadas, professor de Medicina na Uniceplac, ex-secretário de Vigilância em Saúde no Ministério da Saúde e ex-secretário de Saúde do Supremo Tribunal Federal